6 de ago. de 2007

Para que o acesso ao conhecimento seja real. E não apenas virtual


Folha Dirigida, 02/08/2007, via portal da Andifes
Durante dez anos, Jorge Werthein dirigiu o escritório de representação da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) no Brasil. Sociólogo, educador e autor de mais de 40 livros, ele agora é diretor-executivo da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla), entidade que realiza estudos sobre educação e cultura em diversos países. Nascido na Argentina, mas vivendo no Brasil desde os anos 70, após estudar e trabalhar nos Estados Unidos, Jorge Werthein conhece bem as diferentes realidades da América. Por isso, lamenta que os sistemas educacionais dos países latino-americanos, inclusive o do Brasil, sejam tão fracos. "Há uma dívida histórica imensa, com grandes limitações e fragilidades", afirma. Em entrevista à FOLHA DIRIGIDA, o sociólogo analisa o uso que se faz atualmente da tecnologia, da Informática e da internet nestes países. E revela que, em vez de promover a inclusão digital, esses avanços tecnológicos aumentam ainda mais a exclusão e as desigualdades sociais da América Latina.

Recentemente, a Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla), entidade da qual o senhor é diretor-executivo, em parceria com Instituto Sangari e o Ministério da Educação (MEC), lançou o estudo "Lápis, borracha e teclado: tecnologia da informação na educação no Brasil e na América Latina". O estudo afirma que as escolas, em vez de reduzir o abismo social e digital, reproduzem e ampliam a exclusão. Como isso acontece e como reverter esta situação?
Jorge Werthein - Primeiro, é preciso fazer uma leitura desse diagnóstico, para entender qual é o impacto desta tecnologia tão importante - a Informática - na educação. Neste estudo, o que nos surpreendeu foi que, ao se observar a distribuição dos laboratórios nas escolas, percebe-se que eles estão colocados nas melhores instituições públicas. Quando se observa o uso dos telecentros, vemos que estes também, geralmente, são usados por segmentos da população de classes A ou B, ou seja, as mais favorecidas. Para mudar isso, o ministro Fernando Haddad, com os dados da pesquisa em mãos, resolveu concentrar esforços e tecnologias para melhorar o sistema educacional das escolas que estão instaladas nos dois mil municípios com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no Brasil.

De que maneira esses esforços e tecnologias serão utilizados nestes dois mil municípios?
Depois que os municípios forem identificados, será formulada uma política de discriminação positiva, favorecendo as escolas e os seus alunos, que estão em situações mais difíceis por estarem esquecidos. Isso será acompanhado pela distribuição e instalação de computadores nas escolas. Em relação aos telecentros, há de se pensar por que está acontecendo isso. É preciso buscar respostas para utilizar este telecentro com mais eficiência. Os telecentros estão sendo utilizados pela classe média, porque são os que precisam acessar a internet, principalmente para resolver trâmites burocráticos, ligados ao setor público. Eles precisam escrever uma declaração, fazer o Imposto de Renda pela internet... E os outros? Eles não estão chegando ao estágio de utilizar a internet, porque eles não sabem como fazer isso e nem foram formados para usar essas ferramentas tão importantes.

Esta situação se repete em outros países da América Latina?
Não necessariamente. Há países, como o Chile, que, quando analisado o uso que fazem da informática, é observado exatamente o oposto. Lá, as escolas e as pessoas mais desfavorecidas foram priorizadas. Isso mostra que há uma política bem formulada e que isso pode ser feito. O que se repete como um todo na América Latina é o fato de ser uma região de grandes desigualdades. E, lamentavelmente, o Brasil é o número um nessas desigualdades. Por conta disso, a introdução de uma ferramenta tão importante como a informática e o acesso à internet ficam restritos aos setores mais favorecidos. Esta situação é discutida em encontros internacionais, onde é levantada a hipótese de que temos um instrumento fantástico, mas que não vai permitir socializar a informação existente no mundo.

E desde quando esta situação é constatada?
Isso não é uma coisa nova. Antes de toda essa tecnologia atual, já existia a desigualdade no acesso à informação. Quando se produz a informática, acontece uma reprodução da mesma situação. Além disso, não há acesso a uma formação em Informática. E os que têm acesso à informação, baixada através da internet, são pessoas que estão sendo muito mais beneficiadas do que as outras. Ou seja, a distância entre os incluídos e os excluídos digitalmente, dentro do próprio país, como o Brasil, está aumentando, em vez de diminuir. O Chile, a Argentina e a Costa Rica, que são países menores que o Brasil, por exemplo, têm mais usuários de informática e de internet. Há brechas digitais em um país do tamanho do Brasil, com muitas desigualdades. A distância interna, entre alguns estados e regiões, é dramática.

Como o senhor avalia a educação nos países latino-americanos?
Na região, como um todo, os sistemas educacionais são fracos. Fracos quando os comparamos com a realidade de países do mundo desenvolvido. Dentro da região, porém, há países com uma história educacional diferente. Há países que começaram a formular e implementar políticas públicas destinadas a uma educação de qualidade há décadas - como a Argentina e o Uruguai. Além deles, outros países, como o Chile, a Costa Rica e Cuba, têm sistemas educacionais melhores que o resto da América Latina. Entretanto, quando comparamos esses sistemas educacionais com os dos países desenvolvidos, sejam os países nórdicos, na Europa, ou alguns países asiáticos, como a Coréia do Sul, ou ainda países na América mesmo, como Estados Unidos e Canadá, a distância entre a qualidade e a educação é muito grande.

E o Brasil? Como é o nosso sistema educacional?
O Brasil tem uma dívida histórica imensa, que se deve ao fato de o sistema educacional sempre se mostrar com grandes limitações e fragilidades, sem conseguir alcançar uma qualidade aceitável. Isso também acontece, sobretudo, porque no passado o Brasil se preocupou com uma educação pública de qualidade, mas para as elites. Porém, ao tentar democratizar o acesso para as escolas públicas, não se conseguiu uma política adequada, que permitisse, inclusive, se ajustar a esta nova realidade do cenário mundial, onde grandes setores da população, em vários países, conseguem ingressar no sistema educacional. Com isso, o ensino básico brasileiro foi se deteriorando e surgiram as escolas privadas, para onde a elite começou a mandar os seus filhos devido à qualidade maior. Contudo, essas escolas privadas, quando comparadas à média das escolas públicas de países desenvolvidos, ainda estão muito atrás.

Como aumentar o nível de qualidade na educação brasileira?
Agora temos visto uma definição, de caráter político, colocando a ênfase no ensino básico. Este parece ser o caminho mais correto e acertado, como mostram as experiências internacionais. Só que esta não é uma decisão que terá êxito apenas com as definições tomadas pelo governo federal, seja pelo presidente da República ou pelo ministro da Educação. Se não houver a parceria e a responsabilidade da sociedade, dos estados e das prefeituras, o sistema educacional vai continuar sem a qualidade necessária. Retornando ao tema inicial, vou dar um exemplo sobre o uso das tecnologias. No Brasil, entre os 180 milhões de habitantes, uma porcentagem muito reduzida tem acesso ao computador. Porém, ter acesso a muita informação não significa, em uma sociedade com um sistema educacional muito fraco, que se tem acesso ao conhecimento. Nessa pequena porcentagem da população brasileira que tem acesso à internet, há um percentual muito menor de pessoas com capacidade cognitiva para entender essa informação a ponto de assimilá-la e produzir conhecimento. E, se não somos capazes, na América Latina e no Brasil, de aumentar a capacidade cognitiva para aumentar a produção de conhecimento, estamos nos distanciando daqueles que fazem isso muito bem.

Os professores estão preparados para utilizar estas tecnologias como ferramentas pedagógicas?
Não, por várias razões. No Brasil, houve uma decisão política de colocar laboratórios de informática nas escolas. Ocorrem, como conseqüência, três problemas. O primeiro é que não se percebeu algo fundamental: o principal agente educativo é o professor, incluindo os níveis fundamental, médio e superior. Entre os profissionais de educação no Brasil, só 50% têm acesso à informática e à internet. Os outros 50% estão fora. Se você imagina que estamos falando de todos os profissionais de educação, obviamente a porcentagem que tem mais acesso é aquela dos professores de ensino superior. O professor do ensino básico foi excluído. Era preciso definir uma política que permitisse instalar laboratórios e, ao mesmo tempo, promover o acesso aos professores, através de uma venda financiada ou co-financiada pelo Estado ou Prefeitura, para que eles tivessem na sua residência um computador. Isso multiplicaria ainda mais o impacto, por envolver o núcleo familiar. Criaram os laboratórios de informática e colocaram um monitor para tirar dúvidas e orientar os alunos. Dessa maneira, o professor encara esse computador como um profundo competidor e, além disso, rejeita esse instrumento tecnológico por não saber como controlá-lo. Esta vem sendo uma das piores situações na introdução da informática nas escolas de ensino básico - e já é reconhecida como um dos problemas centrais. Alguns estados, por conta disso, desenvolveram políticas para permitir aos professores terem acesso ao computador.

O senhor disse que há três problemas neste aspecto. Quais são os outros dois?
O segundo é que, hoje, um grande número de laboratórios de informática são mantidos fechados pelo diretor da escola, que não deixa os alunos entrarem, com medo de roubos ou quebra de computadores. O terceiro problema é que também há muitos computadores nas escolas brasileiras que não funcionam. Ou seja, o professor não tem computador, nem experiência. Há laboratórios fechados. E alguns laboratórios abertos têm uma grande quantidade de computadores quebrados.

Como é possível mudar a concepção que os professores têm da tecnologia, para que ela seja melhor utilizada?
Existem dois grupos de professores. Um grupo é formado por professores que lecionam há 15 ou 20 anos, que dificilmente incorporam a tecnologia no seu dia-a-dia. Para eles, é preciso mostrar a importância dessas ferramentas. O outro grupo é formado por professores jovens, mas que, lamentavelmente, na maioria dos casos, não aprenderam Informática durante a sua formação. Esta é uma situação grave. Uma grande parcela de professores do ensino básico provém dos setores mais humildes e desfavorecidos da população. Eles estudam em escolas públicas fracas e depois não conseguem ingressar na universidade pública, onde estão, percentualmente, os alunos que provêm das escolas privadas. Quando esse professor entra na faculdade, escolhe faculdades privadas e muitas delas não têm o nível de qualidade necessário para uma formação adequada. Por isso, é preciso exigir que as faculdades de Pedagogia, do setor privado e público, incorporem o ensino de Informática para esses professores. Caso contrário, eles nunca mudarão sua visão sobre a importância de incorporar novas tecnologias no seu trabalho.

Quais ações poderiam ser desenvolvidas entre o Brasil e os países latino-americanos para promover a cultura e o conhecimento no continente?
Muitas ações poderiam ser desenvolvidas. Há muitos países na América Latina com experiências interessantes, bem-sucedidas e inovadoras. Já existem relações bilaterais entre alguns países, que mantêm contatos sistemáticos para compartilhar experiências. O Brasil é um exemplo de estratégias em todos os campos, especialmente devido à fragilidade do seu sistema educacional. Essa troca de experiências poupa tempo e recursos materiais, pois impede que se invente algo que está sendo bem desenvolvido em outro país.

Como o senhor avalia o governo Lula na área social e na educação?
Há um foco, que se acentua nesse segundo mandato do presidente, em uma política social centrada no Bolsa-Família, que é uma derivação do que foi desenvolvido pelos governos anteriores com uma dimensão quantitativa e geográfica maior. Com isso, em alguns estados, foi possível ampliar o sistema educacional. Além disso, o governo criou alguns programas, como o Universidade para Todos (ProUni), para aumentar o número de ingressos nas universidades. Isso é importante. Atualmente, o governo coloca o ensino básico como prioridade, com a seleção dos dois mil municípios com pior IDH para realizar uma política discriminatória positiva. Fazer isso significa incluir em uma sociedade democrática os que estavam historicamente excluídos. Esta é uma política extremamente importante e inteligente. Além disso, o país está avançando, também, em alguns aspectos tecnológicos, como a educação a distância, que é um instrumento muito importante e bem utilizado em países como a Inglaterra, Espanha e Colômbia. Ela não deve ser vista como uma formação universitária de segunda classe - desde que utilizada seriamente.

Em julho, aconteceram os Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, evento que reuniu todos os países do continente. Qual a importância de aliar o esporte à educação em países como estes, tão marcados por desigualdades sociais e falta de oportunidades?
É enorme. Alguns países sempre dedicaram grande atenção ao esporte como forma de integração na sociedade e como um complemento ao processo educacional. São países que lideram as competições, como Estados Unidos e Cuba. Os outros países da América Latina, lamentavelmente, não dão ao esporte a importância que ele deveria ter. Porém, aí encontramos o caso brasileiro, que sempre surpreende. Aqui não há um grande desenvolvimento sistemático para favorecer a prática de esportes. Não há a preocupação em criar futuros atletas, que seriam figuras importantes de identificação para crianças e adolescentes. Apesar disso, o Brasil se saiu muito bem no Pan-Americano, seja em esportes em conjunto, como o vôlei, ou individuais, como a natação. A partir disso, é preciso questionar porque há esta contradição. Se temos um recurso humano tão fantástico, por que não investir nele? O retorno é altíssimo.

Tomado do portal da Andifes
http://www.andifes.org.br/news.php

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